Na tradição japonesa, Kigo (季語) é uma palavra sazonal que indica a estação do ano — como a temporada, o céu, a fauna, as vivências —, considerada a alma da poesia haicai ao enlaçar natureza e tempo. Dessa poética dos dias que sucedem, marcas da efemeridade da vida, nasce a nova exposição individual da artista cearense Paula Siebra, Vestígios de Verão. Exibida em novembro na cidade de Quioto, no Japão, a mostra é fruto da residência artística da pintora na Saga House, no coração de Sagano. Siebra, que acumula obras em coleções na Bélgica, China, Espanha, França, Inglaterra e nos Estados Unidos, é a quinta artista no mundo a participar da residência, promovida pela Shibunkaku, galeria de arte japonesa fundada em 1937.
Citada na lista Forbes Under 30 por sua consolidada carreira internacional, Paula Siebra nasceu na capital Fortaleza, no nordeste brasileiro, em 1998. Após uma temporada francesa com a exposição O Estranho Familiar, em cartaz entre maio e junho de 2025 na galeria Mendes Wood DM Paris, a cearense seguiu para a residência em Quioto. Entre 13 de junho e 31 de agosto, a artista vivenciou a cultura japonesa com atenção plena a um tema que já atravessava seu trabalho, a passagem do tempo – mas, desta vez, profundamente ligada à ecologia.
Vestígios de Verão reúne 16 obras, todas relacionadas ao verão e aos elementos da natureza. A exposição parte da noção de Mono no aware, o conceito japonês de beleza no passageiro, para criar pinturas que são uma espécie de haikai visual: pequenas sínteses de elementos que vivenciamos ao longo de uma estação do ano. “A contemplação dos elementos naturais ainda não aparecia tão concentrada no meu trabalho antes da residência, mas nesses três meses pude vivenciar essa aproximação de forma intensa… Pelo silêncio, pela maneira como a cultura japonesa se relaciona com a natureza, a preservação, as florestas tão perto das cidades… Além disso, as vivências culturais — o ritual do chá, o ritmo de vida diferente — ficaram muito em mim”, compartilha Siebra. O tema é emergente também na agenda ambiental do Brasil, com a realização da 30ª Conferência das Nações Unidas sobre Mudança do Clima (COP30) em Belém do Pará.
O trabalho artístico de Siebra transita entre memórias, paisagens, cenas do cotidiano construídas a óleo por sucessivas camadas de cor. No Japão, a artista viveu um ineditismo em seu processo criativo: “Experimentei outras maneiras de compor, métodos orientais que funcionam de uma forma completamente distinta da lógica ocidental. A pintura oriental é mais plana, com elementos lineares muito fortes; já a ocidental é mais pictórica, carregada de profundidade em luz e sombra. São duas maneiras de ver”, explica. Mantendo a tinta óleo como matéria-prima para as pinturas, a pintora explorou elementos que vêm do universo da xilogravura japonesa, as Ukyo-e, construindo imagens por meio da sobreposição de camadas de cores chapadas, ou em leves transições.
Dentre as obras, destacam-se elementos do verão japonês habitado por Siebra. “As pinturas de Vestígios de Verão são haicais, são detalhes. São pequenas homenagens à cultura japonesa, mas muito sutis, muito pelas beiradas, como eu gosto”, ressalta. Uma das pinturas da artista cearense apresenta ao público uma caixa de doces de verão; enquanto outra representa as tradicionais cigarras que cantam estridentemente no período. Os quadros desvelam em cor a flor de lótus se abrindo; a cesta de folhas que seca ao sol para a preparação do chá; a tesoura e o pente de aço utilizados nos arranjos florais denominados ikebanas; a luz filtrada pelas folhas das árvores, chamada de komorebi.
“Apesar de a tinta a óleo ser ainda o material usado, nessa troca que fiz com o Japão, é impressionante como os aspectos da arte nipônica são marcantes. A repetição de padrões, a mesma pincelada com cores diferentes, esses elementos gráficos são fortes. Outro aspecto interessante é a relação com o vazio: não é necessário completar a forma para dizer a forma. As linhas abertas bastam para sugerir a imagem, não é necessário redizer o mesmo. Isso é muito característico da pintura e também da poesia japonesa”, pontua Siebra.
Nesse período, Paula Siebra dedicou-se também à escrita e produziu seus próprios haicais, poemas curtos de origem japonesa com três versos, geralmente seguindo a estrutura de cinco, sete e cinco sílabas poéticas. Os poemas e as pinturas integram o livro Vestígios de Verão, já lançado na abertura da exposição em Quioto, e distribuído no Brasil em 2026 pela galeria Mendes Wood DM. A exposição homônima ocupou a Saga House e o templo budista Enrian entre os dias 13 e 15 de novembro. Três dessas novas obras também foram exibidas no espaço da Art Collaboration Kyoto, uma feira de arte contemporânea que acontece anualmente no outono, focando na colaboração entre galerias e na conexão com a cidade.
Saga House
Sede do programa de residência artística que Paula Siebra participou, a Saga House estabeleceu-se em Sagano, área de Quioto famosa por suas paisagens e conexão com a cultura japonesa. A região tornou-se o berço da antologia de poemas clássicos Hyakunin isshu (Cem Poemas de Cem Poetas), quando o cortesão do período Heian, Fujiwara no Sadaie, selecionou obras de 100 dos mais célebres poetas waka para escrevê-los em elegante caligrafia em papel shikishi e adornar seu refúgio nas montanhas do distrito de Ogurayama.
Hoje, a antologia de Sadaie revive no programa da Saga House, que convidará 100 artistas para a residência artística experimentada pela brasileira.
